quarta-feira, 9 de junho de 2010

Será que o Sermão da Montanha é politicamente viável?

por Dietrich Bonhoeffer, in Ética, ed. Assírio & Alvim

(destaques do PPV sobre o texto publicado no sítio do SNPC)

Ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte.
Depois de se ter sentado,
os discípulos aproximaram-se dele.
Então tomou a palavra e começou a ensiná-los, dizendo:
«Felizes os pobres em espírito,
porque deles é o Reino do Céu.
Felizes os que choram,
porque serão consolados.
Felizes os mansos,
porque possuirão a terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração,
porque verão a Deus.
Felizes os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça,
porque deles é o Reino do Céu.
Felizes sereis, quando vos insultarem
e perseguirem e, mentindo,
disserem todo o género de calúnias contra vós,
por minha causa.
»

Mt 5, 1-11

Jesus Cristo é (...) a única fonte de que nos advém o conhecimento da essência e da lei da história, tal como Deus as pensou e quis. Bom é o agir adequado à realidade de Jesus Cristo; o agir adequado a Cristo é agir adequado à realidade. Esta proposição - corretamente entendida - não é uma exigência ideal, mas uma enunciação que dimana da própria realidade.

Dois grandes mal-entendidos acerca desta proposição atravessam toda a história e o momento atual da cristandade. O primeiro vê em Jesus Cristo o fundador de uma nova ideologia ética que se deve aplicar à realidade histórica. O segundo vê nele apenas o Deus que diz sim a todo o real. No primeiro caso, assistimos a um eterno conflito entre as necessidades do agir histórico e a «ética de Jesus». No segundo, afirma-se como cristão o real sem conflitos.

Onde uma «ética de Jesus», por exemplo na forma de um Sermão da Montanha assim interpretado, surge separada da fé na encarnação de Deus em Cristo e na reconciliação do mundo com Deus por meio de Cristo, nascem acontecimentos fanático-revolucionários, ou a renúncia a «aplicar esta ética» à ação histórica, isto é, a privatização da ética cristã. A «ética de Jesus» ou fracassa em grande parte perante o mundo histórico - como aconteceu, por exemplo, nos movimentos dos entusiastas do período da Reforma - ou retira-se para o âmbito extraordinariamente restrito da vida privada do indivíduo, como por exemplo no pietismo ou ainda no liberalismo de um Friedrich Naumann, mas não introduz numa concreta responsabilidade histórica. Daí os lugares comuns hoje difundidos em toda a cristandade, segundo os quais com o Sermão da Montanha não seria possível fazer política e quejandos.

Predominante é aqui a conceção de uma realidade histórica subsistente em si e «dotada de leis próprias», de uma ética cristã pela sua origem e pela sua essência estranha à realidade, que a tal realidade se deveria impor. Esquece-se, pelo contrário, o facto decisivo, o único que permite conhecer a estrutura do real, a saber, a encarnação de Deus, a entrada de Deus na história, a assunção da realidade histórica na realidade de Jesus Cristo. Esquece-se que o Sermão da Montanha é a palavra daquele que se não contrapõe à realidade como estranho, como reformador, como fanático, como fundador de religiões, antes experimentou a essência do real no seu corpo e falou a partir do real como nenhum outro homem sobre a terra. O Sermão da Montanha é a palavra de quem é pessoalmente o senhor e a lei do real. Compreender e interpretar o Sermão da Montanha como a palavra do Deus feito homem - eis o mais importante quando se levanta a questão do agir histórico, e aqui deve então depreender-se que o agir adequado a Cristo é um agir adequado à realidade. (...)

O Sermão da Montanha como proclamação do amor de Deus feito homem chama o homem ao amor para com o outro homem e, justamente por isso, a renegar tudo aquilo que o impede no cumprimento desta tarefa, em resumo, chama-o a renegar-se a si mesmo. Ao renunciar à sua felicidade, ao seu direito, à sua justiça, à sua dignidade, à força e ao êxito, ao renunciar à sua vida, o homem torna-se disponível para amar o próximo. O amor de Deus liberta o olhar do homem ofuscado e transviado pelo amor de si e torna-o capaz de reconhecer de modo claro a realidade, o próximo e o mundo, torna-o assim e só assim pronto a assumir uma autêntica responsabilidade.

Por isso, o Sermão da Montanha põe o homem também diante da necessidade de agir historicamente de modo responsável. Vira-se para o indivíduo, não para que este seja algo em si mesmo, mas antes para que seja aquele que é à luz de Deus, a saber, alguém que se encontra em situação de responsabilidade histórica.

Mas porque o indivíduo está já, desde sempre, em situação de responsabilidade, a antiga questão de se o Sermão da Montanha se dirigia ao indivíduo como tal, mas não ao indivíduo em situação de responsabilidade para com outros, levanta-se de modo erróneo. O próprio Sermão da Montanha situa o homem em situação de responsabilidade em face dos outros e não conhece nenhum indivíduo como indivíduo. Nem ele se contenta com prepará-lo para desempenhar a sua tarefa na comunidade, antes o solicita diretamente a agir de modo responsável. Chama-o àquele amor que se manifesta agindo responsavelmente para com o próximo e que nasce do amor de Deus, o qual inclui em si toda a realidade. Assim como o amor de Deus pelo mundo não conhece limitações, assim também o amor humano que dimana do amor de Deus não está limitado a determinados âmbitos da vida e a determinadas relações. Tudo nele está incluído. O Sermão da Montanha como palavra do amor de Deus que reconcilia o mundo vale em toda a parte e sempre, ou então não nos diz verdadeiramente respeito. A vida idílica no lago de Genezaré, que de resto não foi assim tão idílica, não teve mais a ver com o amor de Deus pelo mundo do que as cidades industriais e as grandes potências políticas da nossa época. A crucifixão de Jesus Cristo é a prova mais rigorosa de que o amor de Deus está igualmente próximo e igualmente longe de todos os tempos. Um amor limitado em qualquer sentido não deveria ter acabado na cruz. Jesus morre porque Deus amou o mundo inteiro. E somos chamados a entrar neste mesmo amor por todo o mundo, selado pela Cruz de Jesus. (...)

Uma das abstrações do pensamento pseudo-realista é indicar a auto-afirmação como a única lei da ação política e a negação de si como a única lei do agir cristão e ver nelas uma oposição em que uma tese exclui a outra, uma dupla moral. Encontramo-nos aqui em face da compreensão da realidade mundana e da realidade cristã segundo a lógica dos princípios, que passa por cima da realidade da encarnação de Deus e que, por isso, não apreende nem a realidade mundana nem a realidade cristã. Que o amor de Deus pelo mundo abarque também atividade política, que a forma mundana do amor cristão possa, por isso, assumir igualmente a forma daquele que luta pela auto-afirmação, pelo poder, pelo êxito e pela segurança é algo que se pode compreender só onde se toma a sério a encarnação do amor de Deus. Manifestam-se aqui, pois, também os limites ou, melhor, os bastidores da lei da auto-afirmação na atividade política.

Agir politicamente significa assumir responsabilidades – o que não é possível fazer sem poder. O poder põe-se ao serviço da responsabilidade.