quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

equívocos

por António Costa

A oferta

Não sei por que carga de água, a que título ou para prendar o quê, recebi um contentor com mais de uma tonelada que ocupa o logradouro da minha residência.

Acompanhava-o um livro de instruções, perfeitamente identificado quanto ao destinatário, com número de B.I. e contribuinte, identificando o conteúdo: MERCEDES SL 220 D.

A pressa de abrir tão inusitada oferta, para a qual nada despendi, ainda que a título de portes ou frete, foi muita e, no seu interior, perfeitamente embrulhados, um a um, os milhares de componentes, com garantia de não faltar nenhum, desse referido carro.

Uma advertência, porém, me chamou a atenção: a letras garrafais e a vermelho lia-se antes do mais, no livro de instruções, que, independentemente do destinatário, o carro pertenceria a quem o montasse.

Não sendo eu mecânico, uma de três hipóteses se me punha, dá-lo para que outrem o montasse, aprender a montar, ou deixá-lo onde ainda se encontra.

Embora, para todos os efeitos, esteja completo o MERCEDES, que até gasóleo, lubrificantes, óleo de travões, etc., inclui, não tenho ainda um MERCEDES SL 220 D. Parado no meu terreno, perfeitamente embalado, ao dispor de quem mo roube, está um carro que não é carro.

As peças têm a aptência e a competência para que, delas resulte o produto final, mas falta uma condição para que seja aquilo que pode vir a ser: A montagem!

Se um dia alguém carregar o contentor e desaparecer com ele, poderei apresentar queixa? Acaso posso dizer que me roubaram o carro? Não será mera sucata, em estado de novo, o que agora possuo?


O ser humano

Achei que poderia começar com esta analogia para falar da realidade humana, tão apta a ser, como aquelas peças embaladas, mas ainda não, porque lhe falta a realização.

Realizar é pôr no real, fazer acontecer, o que não passa ainda de mera aptidão, carece de intervenção para que cada peça se ajuste na devida posição e, em inter-acção com todas as outras, possibilite a sua eficácia plena.

Embora não haja dúvida (e alguns a manifestam em relação a alguns estágios prévios da plena funcionalidade) o humano já é mas ainda não e gasta uma vida a tornar-se.

Há, contudo, nesta funcionalidade e eficácia um risco, a saber: o de montar as peças fora do sítio ou deixar algumas de fora.

Não passaria pela cabeça de ninguém, colocar os pneus no lugar dos assentos ou a barra de direcção como veio de transmissão, ou, memos ainda, deitar o líquido refrigerante no depósito e o gasóleo no radiador.

Poderá parecer estranho este comentário mas, quando oiço falar da liberdade de orientação sexual, por exemplo, não me ocorre melhor comparação do que esta.

Se não sou capaz de montar o carro, sou bem capaz de discernir, com um pouco de estudo de anatomia, qual a verdadeira E ÚNICA finalidade de qualquer órgão que compõe o corpo humano e nenhum deles existe com o mero propósito de gozar.

Poderemos ter muito prazer em comer determinados acepipes, mas o facto é que a comida tem, por exclusivo fim, alimentar o corpo, fornecendo-lhe a necessária energia para agir e inter-agir com os demais num percurso de dignificação e libertação mútuas.

Até recorremos à medicina para anular a tendência que alguns humanos experimentam, de comer por prazer e depois vomitarem para, de novo, comer.

Bolimia, creio que é assim que se chama esta anomalia, é, por mais razões e satisfações que o indivíduo alegue, uma doença a combater.

Por outro lado, parece-me que não é necessário um curso extensivo de filosofia ou psicologia para entender que existimos não para exaltar o nosso individualismo, mas para descobrir que nada somos sem os outros e para eles.

Tanto que falta dizer para que se entenda que SER PESSOA é SER HUMANO e ser humano não é ser individualista.

O “eu” para “mim mesmo” é, na súmula da verdade humana, um atentado a esta humanidade que cada qual deverá realizar em si e, de si, para os outros, podendo mesmo afirmar-se que o individualista é desumano.

Onde se insere, nesta reflexão, a homossexualidade? Que procura cada um no outro do mesmo sexo, senão satisfação da sua própria banalidade?

É chocante esta afirmação? Que seja. Demonstro, sem sair da ciência biológica, que tudo se desenvolve num processo contra-natura nessa procura frustrante da melhor e mais sublime capacidade de cada um dos intervenientes, nessa tão exaltada experiência.

Diga-se o que se quiser, mas há órgãos (curiosamente apenas eficazes no encontro masculino+feminino) que são desviados da sua eficiência e os seus detentores, frustrados na eficácia, quando num doentio apego à sua desestruturação psicológico-afectiva reivindicam o estatuto de natural para tal perversão da natureza.

Garanto que fiz uma vez, na disciplina de ciências naturais, a experiência de pegar num feijão, após algum tempo no germinador, e colocá-lo na terra de radícula para cima e caulículo para baixo.

Não sei por que livros e em que faculdades o feijão aprendeu, mas o certo é que acabou por irromper da terra o caule e folhas e imergiu no húmus a raiz.

É preciso não conhecer a própria natureza das coisas para desprezar essa natureza e dar outro fim ao que tem um fim próprio e exclusivo, por mais gozo que daí advenha e, com essa procura, nada mais se consegue do que reduzir a esterco a humanidade da pessoa, num subterfúgio abominável de o fazer em nome de uma realidade, a única que motiva e justifica quanto façamos: O AMOR.

Todavia, é esta tensão DE AMAR, a primeira realidade que se procura profanar. É que amar não é nada do que esses “pares” (diria antes: parelhas) apregoam. Porque amo tanto as outras mulheres como a minha, nada quero delas, no plano da intimidade e tudo realizo com aquela que aceitou tornar-se a finalidade da minha vida, na construção de uma família, na qual revejo o valor do meu percurso na história.

Amar é ser construtor do outro pelo dom de nós mesmos e se não posso conviver um projecto exclusivo e definitivo de construção mútua com alguém, levando-o à realização de todas as suas capacidades então amar é dizer não a apelos, impulsos, solicitações ou apetites, por mais naturais que se me proponham.

Neste quadro diria mesmo que amei algumas mulheres casadas, mais do que os seus maridos, porque não prescindi do respeito que tributo às minhas irmãs, às minhas filhas ou à minha própria mãe.

Amar um homem, eu, homem como ele, é estar disponível para que, pelo concurso e empenho da minha acção, o ajudar a descobrir que, na relação íntima, só a mulher o pode realizar e viabilizar a sua paternidade potencial (ainda que impossibilitada por factores congénitos) e, por essa paternidade, realizar um bem maior que é tornar-se co-criador.

Terei sido claro? Não sei, mas é assim que vejo este mistério do homem para a mulher e desta para o homem. O contrário disto é aberração, doença, má formação de carácter, imaturidade afectiva, banal busca da diferença pela diferença, ou o que seja… mas tudo menos natural porque a natureza também produz anomalias… e só a estupidez levará a querer que se tenha por natural e apreciável a anomalia.