sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"Interrupção da Gravidez" e "Direitos da Mulher"

pelo Prof. José Carlos Areias,

Dezembro 2006

No contexto dos direitos da mulher, a interrupção da gravidez assume, actualmente, um papel de relevo. Não é, no entanto, bem assim que as agendas de alguns partidos políticos ou certos meios de comunicação social tratam deste tema. Preferem discutir o aborto que é um termo mais popular, mais grosseiro e, sobretudo, mais ofensivo para o apreço que a mulher merece. Abortar, do latim, “abortare”, significa, em termos médicos, expulsar o feto antes dos nove meses da gravidez, o que, por outras palavras, quer dizer agredir o feto até às últimas consequências, numa altura em que a vida extra-uterina é inviável. Não pretendendo assumir preferências políticas ou mesmo conexões religiosas, prefiro discutir a interrupção da gravidez em toda a sua possível abrangência. Refere a comunicação social haver em Portugal, aproximadamente, dez mil abortos clandestinos por ano, acrescentando ainda, ser este facto uma vergonha em termos civilizacionais e um risco para a saúde da mulher.

Discutir os direitos da mulher nestes termos poderá representar para alguns, o único enquadramento desejável para a discussão política. Deverá, no entanto, questionar-se se é este o desempenho que os cidadãos esperam dos políticos que elegeram. Quantas vezes foram discutidos na Assembleia da República os direitos e regalias das mulheres grávidas que, de acordo com as estatísticas oficiais, são cerca de 105000 por ano? Que direitos e ajudas têm as grávidas que albergam um feto a quem uma malformação foi diagnosticada? Será correcto se, eventualmente, a maioria das mulheres for preterida, em direitos e subsídios, em detrimento de uma minoria que pretende obter uma resposta socialmente favorável para valores que ela própria intitula de civilizacionais?

A interrupção da gravidez faz parte da intervenção terapêutica em determinadas situações, como podem ser as malformações incompatíveis com a vida. Para abordar este tema é importante saber o grau de desenvolvimento que um feto tem com dez semanas de gestação. Esclarece-se que, com dez semanas gestacionais, o feto tem as quatro câmaras do coração e as grandes artérias embriologicamente formadas, tendo, também, passado já pelo desenvolvimento do sistema nervoso central. Com estes conhecimentos, que todos deveriam ter, poucos duvidarão que um feto com dez semanas é um ser humano. Inviabilizar a vida nestas circunstâncias não será readmitir a pena de morte encapotada em modernos e discutíveis conceitos de civilização?


Um segundo ponto a ponderar é a complexidade dos problemas que um feto pode ter com dez semanas de gestação. Abordando as malformações cardíacas, por serem as mais frequentes e pior diagnosticadas na vida fetal, é bom esclarecer que 30% dos fetos, nesta altura da gestação, poderá possuir este tipo de malformação, associada ou não a outras anomalias extra-cardíacas, nomeadamente, alterações dos cromossomas. Tomar consciência destes números não será, porventura, essencial antes de ponderar exclusivamente nos direitos de dez mil mulheres que pretendem, unilateralmente, interromper a gravidez?

Não pretendo discutir agora os motivos nem as dificuldades que estas mulheres enfrentam, não por incompreensão ou qualquer outro viés, mas sim pelo facto de outros escolherem este tema como o preferido na abordagem da discussão do aborto.

Na minha prática clínica de diagnóstico pré-natal de cardiopatias, enfrento o drama das grávidas que albergam fetos com malformações cardíacas complexas, ajudando-as a tomar decisões, que sempre respeito, prosseguindo uma gravidez de risco, ou assumindo a interrupção da gravidez como um acto terapêutico. Esta experiência de relações humanas muitos não a podem ter, mas poderão, certamente, com humildade e respeito por todos os direitos de todas as mulheres, acrescentar ao debate detalhes importantes na discussão pública que irá ter lugar aquando do provável referendo ao aborto.

Em Setembro deste ano, a Direcção Geral de Saúde distribuiu uma circular normativa contendo os critérios desejáveis para que uma grávida possa ser submetida a diagnóstico precoce de cardiopatias. Estas iniciativas, louváveis por parte do Ministério da Saúde, não têm, até agora, merecido por parte da comunicação social nenhum acolhimento, não sendo assim enquadradas na discussão política dos direitos da mulher. As ecocardiografias fetais, efectuadas nos centros de Cardiologia Pediátrica, são gratuitas, independentemente do número considerado necessário ao longo da gravidez. Em contraste, nos países nórdicos, onde normalmente os serviços de saúde estatais são considerados modelo a copiar, somente uma ecografia fetal morfológica é gratuita no segundo trimestre da gravidez. Mais acções como a descrita devem ser incentivadas, contribuindo para o bem-estar de todas as mulheres que investem no nascimento de um filho.

São estes alguns aspectos que devem fazer parte da discussão dos direitos da mulher nos tempos que se avizinham. Enquadrar estes direitos na janela semi-cerrada de alguns, é injusto na perspectiva do respeito inalienável que todos os seres humanos devem ter uns pelos outros.

*Director de Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital S. João e

Prof. Catedrático de Pediatria da Faculdade de Medicina do Porto


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Actualização dos dados (Fev. 2009):

À data (2006) calculavam-se 10.000 ivg ao ano. Agora e pegando na notícia do mesmo público de há 2 dias, houve em 2008 17.380 ivg das quais só 541 corresponderam a malformações fetais, violação etc. Aqui se vê que a lei permitiu um aumento enorme em 2 anos de ivg. É ainda preciso dizer que o governo entrega 400 euros aos hospitais como pagamento prioritário por cada ivg, o que dá cerca de 7 milhões de euros em 2008. Convém dizer que os partos (cerca de 100.000 em Portugal em 2008) não têm pagamento prioritário, pelo que para as finanças correntes torna mais atractivo para os hospitais as ivg em relação aos partos. Neste país informado é bom saber que o estudo em curso de epidemiologia intitulado geração 21, mostra que 11,3% das grávidas no 1º trimestre, em Portugal, são alcoolizadas, passando esse número para 9,9% no 2º trimestre e 9,8% no 3º trimestre. Estes dados, arrepiantes para o futuro das crianças filhos de mãe alcoólica, não sugerem gastos de verbas para divulgação e trabalho para a diminuição desta vergonha portuguesa.