O valor fundamental da vida é "inultrapassável" e a partir do momento em que se inicia "é intransingentemente impossível intervir sobre ela". Mas como não há consenso sobre o seu início, essa definição cabe à reflexão própria de cada médico.
Em síntese, foi a esta a fórmula encontrada pelo Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos para resolver a incompatibilidade entre o Código Deontológico (CD) ainda vigente e a alteração legal que despenalizou o aborto até às dez semanas.
Apresentada ontem no Porto, a proposta de CD aprovada por unanimidade é agora posta à discussão dos perto de 35 mil médicos portugueses até 30 de Setembro. O documento que resultar da discussão deverá entrar em vigor durante o mês de Outubro.
No preâmbulo, o novo CD fixa o respeito pela vida humana e pela sua dignidade essencial como princípio ético fundamental. A defesa da vida, diz o bastonário da OM, é "o vértice do comportamento ético do médico", o mesmo que faz da eutanásia um acto eticamente ilícito. E isso, insiste, independentemente de conceitos ideológicos ou religiosos. "Hipócrates viveu 600 anos antes de Cristo, o humanismo médico é laico", reforça Pedro Nunes.
A nuance está no que a seguir estipula o documento: se há consenso quanto ao fim da vida - a morte do tronco encefálico -, não há quanto ao seu início, e "a OM não tem pretensão de fixá-lo", resume Pedro Nunes, que diz rever-se "completamente" no novo documento. "Ao não haver, cabe ao médico fazer a sua reflexão ética, na base dos conhecimentos científicos actuais, das recomendações da Ordem e do princípio ético da prudência", mas não na base do "dá jeito". Se para uns o início da vida é a concepção, para outros é o momento a partir do qual o óvulo fecundado se torna indivisível (14 dias), para outros ainda fixa-se na formação do tronco encefálico, ao fim de semanas. "Este CD é inovador porque traduz por escrito algo que todos os médicos defendem: não há consenso quanto ao início da vida".
Ao retirar a definição de aborto como "falha deontológica grave", a OM acaba por adaptar melhor o seu CD à lei geral do país. A discrepância aquando da despenalização da interrupção voluntária da gravidez gerara um quiproquo com o então ministro da Saúde. Correia de Campos dissera que a OM tinha que mudar o código e, perante a recusa do bastonário, interpôs uma acção na Justiça (que ainda corre). O procurador-geral da República alinhara com o ministro, ao que Pedro Nunes respondera não dar opiniões sobre processos judiciais.