segunda-feira, 7 de julho de 2008

Desordem médica

No passado, registámos diversas posições do actual bastonário da Ordem dos Médicos e até o apoiámos publicamente, nomeadamente no contexto da sua eleição. Escrevemos sobre as bastonadas do bastonário, sobre alguns ataques de pseudo-democratas à ordem, e subscrevemos a declaração de que «a ética médica é relevante!».

Hoje, porém, não podemos esconder a nossa perplexidade com a aparente deriva na Ordem dos Médicos. Apesar de frequentemente a citação jornalística distorcer o conteúdo das declarações, neste caso a coerência interna e as citações constantes do artigo publicado no JN/DN não deixam margem para grandes dúvidas quanto ao teor da proposta de Código Deontológico (CD) aprovada no Porto pelo Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, com o apoio do bastonário.

Vamos por isso, comentar e questionar algumas das passagens mais significativas, com base na notícia publicada posto que não tivemos (ainda) acesso às actas da reunião.

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"a proposta de CD [foi] aprovada por unanimidade"
Bastonário incluído, naturalmente. Como é possível compaginar isto com declarações de há bem poucos meses? É certo que o bastonário se comprometeu com a consulta à classe - mas não é menos certo que, na sua resistência ao Ministro Correia de Campos entretanto demitido, deixou entender uma posição pessoal discordante com a do ministro. Se assim não era, mostrou ser menos médico e mais político - no pior sentido!

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«Apresentada ontem no Porto, a proposta de CD aprovada por unanimidade é agora posta à discussão dos perto de 35 mil médicos portugueses até 30 de Setembro. »
Se houver boa-fé, espera-se que, ao menos, a proposta não seja posta à votação dos médicos "por junto", mas haja a decência de pedir a posição dos médicos relativamente A CADA PONTO DE ALTERAÇÃO PROPOSTO!

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"Mas como não há consenso sobre o seu início, essa definição cabe à reflexão própria de cada médico."
Mas há consenso sobre alguma coisa neste mundo? Mal de nós se chegarmos algum dia a observar apenas as regras (especialmente as deontológicas) sobre as quais existe consenso, ou seja, acordo universal.


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«No preâmbulo, o novo CD fixa o respeito pela vida humana e pela sua dignidade essencial como princípio ético fundamental.»
O costume. No princípio "todos os animais são iguais". Depois é que uns se tornam "mais iguais do que os outros..."

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«A defesa da vida, diz o bastonário da OM, é "o vértice do comportamento ético do médico", o mesmo que faz da eutanásia um acto eticamente ilícito. »
Até ver. Ou é impressão nossa, ou a O.M. e o seu bastonário adoptaram a postura dos abortistas. Avançar sempre no mesmo sentido por pequenos passos, com pequenas cedências. Uma hoje, outra amanhã... a ver se não se nota muito!

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«se há consenso quanto ao fim da vida - a morte do tronco encefálico -, não há quanto ao seu início»
Se ainda houvesse lógica e racionalidade na Ciência, pareceria que se a actividade do tronco encefálico serve como "critério de morte" também serviria como "critério de Vida". E até estaríamos a falar de um critério minimalista, posto que já foram registados casos de regresso(?) ou continuação da Vida após a cessação de actividade no tronco encefálico. O que parece é que quando as coisas dão jeito, aproveitam-se e quando não dão, ignoram-se. Mas isto significa que a ética medicina deixa de se apoiar na ciência e na racionalidade para se vergar indecorosamente às pressões públicas de um poder político corrupto e corruptor!

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«Se para uns o início da vida é a concepção, para outros é o momento a partir do qual o óvulo fecundado se torna indivisível (14 dias), para outros ainda fixa-se na formação do tronco encefálico, ao fim de semanas [ quantas? menos de dez semanas, não é?)].»
Se não há consenso, perante estes 3 possíveis critérios podia-se adoptar a postura mais permissiva, seguindo o cumulativo de todos eles. Ou podia-se assumir uma postura de prudência, adoptando o critério mais restritivo - o da concepção. Esperar-se-ia que um grupo para o qual alegadamente «A defesa da vida, diz o bastonário da OM, é "o vértice do comportamento ético do médico"» seria naturalmente propenso a respeitar toda a Vida Humana, pondo-se a salvo de qualquer evolução da certeza científica sobre a presença de Vida Humana logo no zigoto já concebido. A luz da (verdadeira) ciência revela cada vez melhor as magníficas e eloquentes manifestações de Vida cada vez mais perto do momento primordial da concepção. Mas um conselho de médicos portugueses vem propor à generalidade da classe um código que ignora esta tendência e declara o "laissez faire, laissez tuer". Esperamos, naturalmente, que a mesma lucidez que levou a classe a rejeitar recentemente o candidato que se mostrava favorável à revisão do CD no sentido agora surpreendentemente apoiado pelo opositor... eleito em nome da posição contrária. Embora o Dr. Pedro Nunes, declarasse a sua vontade de consultar a classe, sempre deixou entender a sua oposição pessoal à introdução no código de elementos contrários ao juramento de Hipócrates, como agora parece ser o caso.

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"Este CD [código deontológico] é inovador porque traduz por escrito algo que todos os médicos defendem: não há consenso quanto ao início da vida".
Há algum interesse em que os códigos deontológicos sejam inovadores? São assim como automóveis ou corn-flakes, produtos de mercado, susceptíveis de obter o melhor interesse e favor do público quando passam por um processo de inovação?


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«cabe ao médico fazer a sua reflexão ética, na base dos conhecimentos científicos actuais»
E eles a darem-lhe. Se há elemento que caracteriza a ciência é exactamente a sua universalidade, a possibilidade de validação consistente dos seus resultados por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo e, no limite, até do universo. Será legítimo invocar o apoio da Ciência para propor a arbitrariedade pessoal "de cada médico"? Então, a partir de agora deixa talvez de ser necessária uma Ordem dos Médicos - cada vez menos merecedora do crédito e confiança da sociedade - e regressamos ao "estado selvagem" em que cada paciente deve pedir a cada médico o seu "critério deontológico pessoal" antes de lhe confiar o seu caso.

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«Pedro Nunes, diz rever-se "completamente" no novo documento. »
Será este o mesmo Pedro Nunes que há poucos meses apoiavamos publicamente na difícil reeleição para a Ordem, com um discurso de claro desafio à tentativa de manipulação da consciência médica pelo Governo? O que se poderá ter passado nos bastidores do poder para uma tal (e tão rápida) "evolução" da posição do bastonário?!

Luís Botelho Ribeiro