segunda-feira, 30 de março de 2009

águas livres

Um dos mais belos gestos atribuídos ao Santo Condestável prende-se com a disposição perpétua para deixar uma cantarinha de água sempre pronta a dessedentar os viajantes que passam junto à capela que em S. Jorge assinala o local da batalha de Aljubarrota - o sítio flutuou ao vento onde o pendão de D. Nuno.

Num tempo em que quem cada vez menos fontes de águas livres (e potáveis) permitem a quem passa matar a sede, possa a feliz ocasião da canonização de S. Nuno de Santa Maria dar o mote para a recuperação de tantas fontes que à beira da estrada faziam de Portugal uma terra diferente, um espaço de gratuidade. E em jeito de homenagem a Nun'Álvares, aqui fica um pequeno texto de 1993 sobre uma dessas fontes, por sinal na Zambujeira do mar, antes do primeiro festival do sudoeste...


Fonte da Zambujeira

Já me não lembro bem do que senti ao ver aquela fonte ali. Plantada bem no centro do morro a brotar faíscas, como se a terra tivesse olhos para ver quem lhe anda por cima...
Mas era especial aquela fonte. Os banhistas deixavam a praia e subiam o caminho para lá ir beber. Beber a água que a terra não regateia. Beber a mística do sítio! Que aquele sítio tinha mística já antes, muito antes de ali nascer água e de um povo artista ali ter posto uma fonte.
Branca, caiada com o amor de quem lá muitas vezes saciou a sede e lhe compôs aquelas reviravoltas azuis, a estou vendo na pura simetria do desenho tão português – o banco corrido na pedra a convidar ao descanso.

E aquela gente lá estava, feliz. Uns chegavam, outros partiam. Outros ainda, sentados, tagarelavam vendo as ondas passar lá ao fundo. As ondas e o tempo... Cá de longe, recordo-me de os ter quase invejado. Afinal decidira simplesmente pôr o pé num ponto mais do mapa, por sinal junto ao Atlântico. Fora-me aconselhado por um amigo, apreciador da costa alentejana. Aquilo não estava destinado a ser muito mais do que um local pitoresco, uma cerveja e meia dúzia de fotografias banais. Porque me apetecia então ficar? Porque raio me tentava a ideia de ir lá beber e entrar na cavaqueira... e esquecer os minutos?

Da fonte nem sequer me pareceu que jorrasse grande água. Mas que importava? Ocorreram-me umas palavras ouvidas em Pinhel uns tempos atrás: «Cá na terra, quando falha a água nas torneiras, vai tudo encher os cântaros à fonte. Até lembra o antigamente – tudo a conversar. Santo convívio, é uma alegria!». Mas seria isto que me prendia àquela fonte? A memória de momentos que já não vivi?

Na verdade, qualquer homem tem hoje muitos meios para comunicar, para se deslocar, para se encontrar, para enviar as tais imagens das mil palavras... A população, dizem, tem aumentado em progressão geométrica e, por isso, não falta com quem falar.

O telefone, as rádios locais, as rádios globais, os jornais, as televisões de mil canais: tudo nos convida a entrar no salão de festas da humanidade, para nos pulverizar em mil atenções.
Percebo agora o que foi que vi na fonte da Zambujeira. Na quinta dimensão, quiçá na sexta, a fada da fonte juntava calmamente os estilhaços das almas perdidas aqui e ali não se sabe bem quando. Depois, pela água ou pelo vento, fazia-os regressar.

Quem andar pelas estradas assiste ao extermínio das fontes. De caminho para o Douro, nas vindimas, uma mão-cheia de fontes sempre concorridas enchia-me os olhos de rapaz.
E se parávamos era uma festa! Agora, nas estradas velhas as fontes secaram, foram sacrificadas ao alargamento da via ou tombaram vítimas do conhecido civismo lusitano. Nas novas vias, do infante ou do outro, quando a água chega às raras bicas já percorreu quilómetros de aromáticos canos de PVC.

Felizmente, a par da decadência das fontes junto ao caminho, proliferam as marcas de... água engarrafada. E está bem!

Quando já nem a água da torneira puder ser bebida, os especialistas cá estarão a velar pela saúde pública, metendo em graciosas garrafinhas as melhores castas do líquido precioso.
O preço? Ora! Pague quatro e leve três – está em promoção!
Quando um “visionário” se lembrar de semear vivendas de férias por aquele morro da Zambujeira acima, no último momento talvez hesite entre arrasar a fonte ou deixá-la como mono no centro de uma rotunda - os ingleses até são capazes de gostar. Melhor ainda, se finalmente resolver fazer “daquilo” um urinol para os caniches das madames, eu lembrar-me-ei da fonte que, plantada ali a meio do morro, era afinal uma séria ameaça à sociedade de consumo. Depois, enfim, tentarei imaginar como seria estar ali sentado a beber dela!

Luis Botelho Ribeiro
Aveiro, 28 de Agosto de 1993