sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Do abatimento...

A CATÁSTROFE * - parte 1

Eça de Queirós



Eu moro à esquina do Largo do Pelourinho, justamente defronte do Arsenal. [...] quando herdei da minha tia Petronilha, comprei esta casa, defronte do Arsenal. [...]
De resto, eu tencionava alugar o prédio e ir habitar, com os meus, uma casinha pequena, alegre e fresca, que tinha apetecido para os lados do Vale do Pereiro, Mas quando vieram as nossas desgraças e o exército inimigo ocupou Lisboa, a necessidade de economia, os tempos tão difíceis, forçaram-me a abandonar esse plano de viver no campo, e ainda aqui estou, neste triste segundo andar do Largo do Pelourinho, defronte do Arsenal.

Em má hora vim eu para aqui. Porque creio que esta vizinhança do Arsenal me tem feito sentir com uma intensidade maior todas as amarguras da invasão. [...] Ainda que o primeiro terror passou, que a cidade vai retomando pouco a pouco a sua fisionomia ordinária, que circulam as tipóias e os tramways, pesa todavia o que quer que seja de doloroso sobre a cidade: o ar está carregado de qualquer coisa subtil e opressivo, como uma atmosfera intolerável que circula nas praças, penetra nas casas, muda o gosto à água, faz parecer menos claro, deposita na alma uma tristeza contínua, obcecante.

Às vezes, quando uma pessoa sai, e ocupada nalgum negócio, distraída por ele, se esquece do grande desastre que nos envolve, basta, a uma esquina, a presença de um uniforme inimigo, para fazer imediatamente recair na alma, com um peso de penedo, a ideia da derrota e do fim da Pátria. Não sei o que é, mas, por exemplo, desde que no alto de algum edifício flutua a bandeira estrangeira, parece que este azul já não é o nosso céu, e tem alguma coisa de uma bruma lutuosa.

Contudo, noutros prédios, noutros bairros, basta a gente isolar-se em casa, para se subtrair a esta desolação ambiente!

Já que não há Pátria, há Família: fecham-se as portas, reúnem-se todos na sala, em volta do candeeiro doméstico; conversa-se. A recordação das desgraças oferece como um alívio pungente e a perspectiva da esperança ilude como uma felicidade passageira; lembram-se os amigos, os conhecidos que morreram bravamente na batalha; às vezes a recordação de um facto heróico dá como a sensação da honra conservada; depois, em redor do candeeiro, baixo, numa palpitação de todo o ser, há uma pequena conspiraçãozinha em família!

E o sonho da desforra faz suportar a realidade da catástrofe...

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Mas a mim, nem sequer me é dado este isolamento: porque a não ser que feche as janelas, que me enterre numa treva constante, que viva à luz do gás quando o sol de Julho faísca lá fora, não posso deixar de ver diante de mim, como um memento odioso à porta do Arsenal, a sentinela estrangeira pisando a Pátria...

E é justamente essa sentinela que me indigna: decerto outros uniformes estrangeiros, todos esses oficiais dos couraçados no ancoradouro, passam a toda a hora, na insolência brilhante das suas fardas espectaculosas... Pois bem, esses não me irritam... Há naquele vaivém de oficiais alguma coisa de apressado, de inquieto, que me dá a ideia de uma ocupação transitória, de esquadras que vão levantar ferro, de humilhações que vão partir para sempre.

Mas aquela sentinela, eterna, que me parece sempre a mesma, tem um ar de estabilidade, de perpetuidade que me faz o coração negro. Cada passada que ela dá com a sua dura sola, cai-me com um eco lúgubre na alma, e no seu monótono passeio, de guarita a guarita, dá-me a ideia de que nunca deixará de haver, sobre a terra portuguesa, uma sentinela estrangeira.

[...] Há sobretudo um tipo de soldado que me indigna: é o rapagão robusto, sólido, bem plantado sobre as pernas, de cara decidida e olhos reluzentes; penso sempre: foi este que nos venceu! Não sei porquê, lembrando-me do nosso soldado, bisonho, sujo, encolhido, enfezado do mau ar dos quartéis e da insalubridade dos ranchos - vejo nesta superioridade de tipo e de raça toda a explicação da catástrofe.

Antigamente, antes da invasão, raras vezes pensei em observar a sentinela do Arsenal: lembra-me, porém, de a ter visto, por acaso, ao chegar à janela: se chovia, era certo descobri-la encolhida na guarita, fixando um olho apagado e triste sob o caudal de água; se fazia calma, era o seu andar, o seu derreado de ombros que me impressionavam... era a moleza lenta do passo, uma expressão contínua e evidente de tédio e fadiga; e depois, ao fim de duas horas de serviço, era um derreamento maior, um embrutecimento, uma maneira lorpa de fixar tudo [...] que tornavam visível a falta de nervo, de vigor, de fixidez disciplinada, de firmeza, de persistência. E esta visão do nosso soldado, parece-me então alargar-se a abranger toda a cidade, todo o País! Foi esta sonolência lúgubre, este tédio, esta falta de decisão, de energia, esta indiferença cínica, este relaxamento da vontade, creio, que nos perderam...

Ainda hoje me soam aos ouvidos as acusações tantas vezes repetidas do tempo da luta: não tínhamos exército, nem esquadra, nem artilharia, nem defesas, nem armas!... Qual! O que não tínhamos era almas... Era isso que estava morto, apagado, adormecido, desnacionalizado, inerte... E quando num Estado as almas estão envilecidas e gastas - o resto pouco vale...

[...]

Ninguém acreditava na resistência possível e, diante do perigo, o egoísmo erguia-se feroz e brutal. O ódio ao inimigo era violento - menos pela perda possível da Pátria livre do que pelos desastres particulares que traria a derrota: um, tremia pelo seu emprego, outro, pelo juro das suas inscrições. Até aí o Estado dera o pão ao País, e na perda do Estado, via-se o fim do pão de cada dia. [...] E, de resto, cada um, sentindo a fraqueza egoísta da sua alma, julgava instintivamente o País tomado do mesmo abatimento. A ideia de um levantamento em massa, da criação de uma guarda móbil, de milícias, era recebida com um encolher de ombros: para quê? Não se pode fazer nada! Somos esmagados!

[...]

De repente, do lado da Rua do Carmo, veio um rumor: era como que uma melopeia ritmada, que se sentia, que vinha no ar, que se aproximava; luzes de archotes, destacando-se no caiado das casas, apareceram à esquina do Rossio, e um grupo desembocou, marchando vivamente, ao compasso de um hino patriótico, cujo ritmo o impelia, num passo largo:

Guerra, guerra, a guerra é santa,
Pela santa independência...

Eram talvez uns vinte e parecia, de cima, da janela, pelos chapéus altos, serem rapazes das escolas ou de alguma das associações que então abundavam na cidade.
Continuaram ao longo do Rossio, agitando os braços, erguendo a voz, num apelo à multidão escura. Mas nenhum gesto lhes respondeu; toda a massa se apinhava a ver passar aqueles entusiasmos solitários; lojas apagaram-se logo, fecharam num susto da bernarda; e naquele silêncio frio, que vinha da indiferença da gente e da mudez das fachadas, parecia que o canto se extinguia por si mesmo, que o entusiasmo se abatia, como uma bandeira a que falta a brisa, caindo ao longo do mastro! Quando chegaram perto do Teatro de D. Maria, o hino quase cessara, os archotes apagavam-se... Aquilo sumiu-se, perdeu-se entre a massa escura de gente, como um efémero esforço de heroísmo numa vasta indiferença pública.

Recolhi-me para dentro, pensando, com a garganta apertada, que estávamos para sempre perdidos.

[...]

E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira da Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários, fazendo de cada cidadão um soldado, e preparando assim de antemão, um grande exército nacional de defesa, armado, equipado, enérgico e tendo recebido, no hábito da disciplina, o orgulho da farda...

Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!... O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.

Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos! O Governo, a Constituição, a própria carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu país próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!

Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto - tudo! Quando um País abdica assim nas mãos de um Governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços, esperando que a civilização lhe caia feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse País está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra. O cérebro perde a acção! E como o Governo lá está para fazer tudo - o País estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda é - como nós acordámos - com uma sentinela à porta do Arsenal!

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* Transcrição de excertos do texto editado pela "Livros do Brasil", 2000; trazida à internet em tempo de comemorações dos 200 anos da fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro e... d'A Catástrofe, propriamente dita, da tomada de Lisboa pelo exército francês sob o comando de Junot; transcrição motivada por não menores catástrofes em curso na sociedade portuguesa, em grande medida consentidas pela anemia cívica e passividade gerais.